Após conquista histórica para o Brasil, nova número 1 do mundo ressalta orgulho de representar mulheres pretas no topo do pódio: "Essa medalha representa toda minha luta"
Rebeca Andrade carregava no peito a medalha de campeã mundial do individual geral. O título mais nobre da ginástica artística. Nesta quinta-feira, a ginasta de 23 anos encantou no Mundial de Liverpool e faturou um ouro inédito para o Brasil. Após a conquista histórica, ela ressaltou o orgulho de representar mulheres pretas no topo do pódio embalada pelo Baile de Favela.
- É pra mostrar do que o preto é capaz, né!? Eu me sinto muito orgulhosa de levar essa música para o mundo tudo. Fico feliz que ela ganhou essa medalha de ouro. Merecia muito. No Brasil, todo mundo que entende as dificuldades que uma atleta preta tem, que uma pessoa preta tem de chegar no alto rendimento de ter possibilidades, oportunidades... De certa forma tentar ajudar essas pessoas. Para chegar aqui hoje, tive muita ajuda no início. Dos meus vizinhos, quando eu morava junto com a minha mãe, de emprestar dinheiro, de condução, de ficar na casa dos outros para eu conseguir treinar. Então foi muito difícil. Acho que essa medalha representa tudo isso, toda minha história, toda minha luta. Hoje ela foi premiada. Foi aqui e nas Olimpíadas também. Estou muito feliz de ser quem eu sou, de representar tudo que represento. Espero continuar fazendo história - disse a brasileira, apenas a segunda ginasta preta da história a se tornar número 1 de um Mundial, depois da americana Simone Biles.
De Guarulhos ao topo do Mundo
A história de Rebeca Andrade é parecida com a de muitos brasileiros. Ela vem de uma família humilde da periferia de Guarulhos. Com o emprego de doméstica, Dona Rosa sustentava os oito filhos em uma casa de um cômodo onde todos dormiam, e banheiro do lado de fora - graças à ginástica de Rebeca, a família vive em uma casa mais confortável hoje. Por incentivo de uma tia, Rebeca entrou na ginástica aos quatro anos, em um projeto da Secretaria de Esportes de Guarulhos, no ginásio Bonifácio Cardoso, na Vila Tijuco. Era o irmão mais velho que levava na garupa de uma bicicleta.
Por vezes, Dona Rosa não conseguia garantir que Rebeca fosse ao treino. A técnica Keli Kitaura, então, fez a proposta de ficar com a menina em casa nos fins de semana. Era um jeito de garantir que aquele potencial enorme não fosse desperdiçado. Aos 9 anos, Rebeca recebeu outro convite da treinadora: deixar de vez o lar de sua família para acompanhá-la em Curitiba, um importante centro da ginástica artística brasileira.
Dona Rosa deixou a filha seguir seu sonho no esporte. Nos dias ruins, Rebeca ligava chorando para a mãe pedindo para voltar para casa, não estava conseguindo fazer os difíceis movimentos que os técnicos pediam. Rosa acalmava a filha, que persistia na ginástica de alto rendimento. Ela foi contratada pelo Flamengo e, junto com Keli, se mudou para o Rio de Janeiro.
Rebeca desenvolveu bem sua ginástica e logo foi apontada como uma promessa. Só que as lesões começaram a minar seu potencial ainda na base. Ela estava classificada para as Olimpíadas da Juventude de Nanquim, em 2014, mas teve de passar por uma cirurgia no pé. Viu de casa a amiga Flávia Saraiva lhe substituir e conquistar três medalhas na China.
Rebeca não demorou a recuperar a forma e entrar com tudo no seu primeiro ano na categoria adulta. Pouco antes do que seria sua primeira grande competição, o Pan de 2015, acabou rompendo o ligamento cruzado anterior do joelho direito ao aterrissar ainda girando em um salto durante um treino. A cirurgia era inevitável, e oito meses de uma recuperação dura. Rebeca temeu não se recuperar mais, ganhou peso e por vezes perdeu a motivação. Voltou a ligar para a mãe e falar que iria desistir. Dona Rosa deu uma bronca, não deixou a filha abandonar a ginástica sem tentar.
Rebeca conseguiu disputar a Rio 2016. Ainda não estava no seu auge físico e não tentou vaga na final do salto, seu principal aparelho, mas foi a decisão do individual geral atrás apenas das americanas e acabou na nona posição. Em 2017, sem a presença de Simone Biles no Mundial de Montreal, a brasileira chegou como favorita ao ouro do individual geral. Aí teve uma lesão recidiva no joelho durante um salto no aquecimento para o treino de pódio, uma espécie de ensaio geral da ginástica.
A recuperação de Rebeca na segunda cirurgia do joelho direito foi tão boa que ela conseguiu enfim disputar seu primeiro Mundial em 2018, ainda que não tenha se apresentado nos quatro aparelhos. Em junho de 2019, durante o solo do Campeonato Brasileiro, uma nova lesão no joelho. Rebeca não pôde disputar o Mundial de Stuttgart, competição pré-olímpica e viu a vaga para Tóquio ameaçada.
Rebeca se preparava para tentar a vaga olímpica no Campeonato Pan-Americano em 2020, quando o coronavírus se tornou uma pandemia e adiou o Pan e as Olimpíadas. Diante de tantos cancelamentos de eventos por causa da covid-19, a incerteza de que o Pan de fato aconteceria no Rio atormentou a ginasta. Poderia nem ter a chance de tentar a classificação. A competição aconteceu, e Rebeca brilhou. Foi campeã do individual geral, garantiu a vaga em Tóquio e mostrou que estava pronta para tentar um inédito pódio olímpico para a ginástica artística feminina do Brasil.
Em Tóquio, Rebeca encantou o mundo com seu Baile de Favela. Se tornou a primeira brasileira medalhista olímpica da ginástica com a prata no individual geral. Depois se tornou a primeira brasileira campeã olímpica da modalidade com o ouro no salto. Logo voltou ao Japão para o Mundial de Kitakyushu, onde mais uma vez saiu com um ouro (salto) e uma prata (barras assimétricas).
Nesta temporada, Rebeca atingiu um novo patamar. Ela se consolidou como a maior referência da modalidade. Dominou a temporada e foi absoluta na conquista do inédito ouro do individual geral no Mundial de Liverpool. E Rebeca ainda vai voltar à arena de Liverpool para buscar mais três pódios no fim de semana, nas barras, na trave e no solo.
- Significa todo meu trabalho. Foi o trabalho todo da minha equipe multidisciplinar, das meninas que treinam junto comigo e me deram todo o apoio hoje. A gente trabalha muito duro. Estou orgulhosa de mim, do que apresentei aqui dentro e de todas as meninas que passaram aqui hoje, porque sei o quanto trabalho para chegar aqui, então imagino o quanto elas trabalham para chegar aqui e arrasar. É um orgulho enorme. Estou muito feliz.
Fonte: ge.globo.com
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